* * *
"- Veja, mãezita, escrevi esta cartinha para Deus.
- Não se escreve para Deus, minha filha.
- E porquê?
O pobre Deus, explicava Dona Constança, sofria de vista cansada, exaurido pelos peditórios infinitos.
- A mãe pode ler?
- Não quero.
- Posso ler em voz alta?
Também não. Os pedidos verbais, fora da oficial oração, não têm validade legal. Ela que rezasse, como mandavam as escrituras.
E tudo se repetia, sempre igual, até que, certa vez, Constança puxou a menina pelos braços, convidando-a com gentileza a sentar-se no chão. Partiu um galho de arbusto e solicitou, apontando a areia:
- Escreva aí!
- Escrever o quê?
- Qualquer coisa, um nome, o seu, o meu, qualquer...
A moça hesitou. Escrever no chão? A mãe, por fim, se explanou:
- É que eu só sei ler na areia.
Tinha sido ali, no pátio da velha casa, que ela havia recebido lições do abêcê. A terra tinha sido o seu quadro negro, o quintal tinha sido a sua escola. Mwadia sorriu, fingindo acreditar. A mãe insistiu.
- Escreva na terra, filha. A terra é a página onde Deus lê."
Mia Couto, O outro pé da sereia (Caminho)
[O almoço continua a ser o "intervalo" dedicado à leitura... Momentos que se revelam, cada vez mais, deliciosos! À medida que a história avança, a vontade de devorar cada letra, cada palavra, cada frase... capítulo atrás de capítulo... aumenta! E 'quem' fica a perder - e a arrefecer! - é a comida!]